Introdução à Mecânica Quântica

Jaime E. Villate.
Universidade do Porto, Portugal, 2025.

4. Postulados da mecânica quântica

4.1. Comutadores

O produto entre matrizes não é comutativo. A ordem em que forem multiplicadas duas matrizes pode dar resultados diferentes. Como tal, a ordem em que forem aplicados dos operadores também conduz, em geral, a resultados diferentes. Define-se o comutador de dois operadores Ω^ e Λ^, igual ao operador:

[Ω^,Λ^]=Ω^Λ^Λ^Ω^
(4.1)

a forma como o comutador atua num ket |Ψ é,

[Ω^,Λ^]|Ψ=Ω^(Λ^|Ψ)Λ^(Ω^|Ψ)
(4.2)

Essa definição conduz às seguintes propriedades, análogas às propriedades dos parênteses de Poisson:

  1. Anticomutatividade: [Ω^,Λ^]=[Λ^,Ω^]
  2. Linearidade: [wΩ^+zΛ^,Γ^]=w[Ω^,Γ^]+z[Λ^,Γ^]
  3. Regra da cadeia: [Ω^Λ^,Γ^]=Ω^[Λ^,Γ^]+[Ω^,Γ^]Λ^
  4. Identidade de Jacobi: [Ω^,[Λ^,Γ^]]+[Λ^,[Γ^,Ω^]]+[Γ^,[Ω^,Λ^]]=0^

O operador nulo, 0^, é o operador que atuando em qualquer ket produz o ket nulo. A anticomutatividade implica que o comutador de qualquer operador com si próprio é nulo: [Ω^,Ω^]=0^.

A semelhança das propriedades do comutador entre dois operadores com as propriedades dos parênteses de Poisson, será aproveitada para construir a mecânica quântica a partir da mecânica clássica, como veremos numa próxima secção.

Se o comutador entre dois operadores for nulo, os operadores comutam, isto é, a ordem em que sejam aplicados os dois operadores é indiferente.

Quando dois operadores Ω^ e Λ^ comutam, têm os mesmos valores e vetores próprios.

Outra forma de escrever a equação (4.1) é,

(4.3)

ou seja, podemos trocar a ordem de dois operadore, se adicionarmos também o comutador entre eles.

4.2. Operadores unitários

Diz-se que um operador U^ é unitário, se quando multiplicado pelo seu operador adjunto o resultado for o operador identidade:

U^U^=1^
(4.4)

isto é, o operador adjunto U^ é o operador inverso de U^. Note-se que o adjunto do operador adjunto é o operador inicial, e a ordem do produto na equação anterior é indiferente.

A propriedade importante dos operadores unitários é que atuando sobre dois kets quaisquer não alteram o seu produto interno. Para o demonstrar, sejam |Ψu e |Φu os kets obtidos após aplicar o operador U^ nos kets |Ψ e |Φ:

|Ψu=U^|Ψ|Φu=U^|Φ
(4.5)

A segunda expressão implica Φu|=Φ|U^, e o produto interno entre os kets transformados é:

Φu|Ψu=Φ|U^U^|Ψ=Φ|Ψ
(4.6)

que é o mesmo produto interno antes dos kets serem transformados. Em particular, como a norma de um ket é a raiz quadrada do produto interno do ket com si próprio, as normas dos kets também não são alteradas pela ação do operador. Como tal, um operador unitário transforma todos os kets sem alterar os ângulo entre eles nem as suas normas; a estrutura do espaço vetorial continua igual, tal como uma rotação no espaço euclidiano.

A matriz que representa um operador unitário é uma matriz unitária; cada coluna dessa matriz são as componentes do ket obtido após aplicar o operador U^ em cada um dos elementos da base {|ei}, e as linhas da matriz de U^ (matriz conjugado transposto) são as componentes dos respectivos bras. Como o produto interno não é alterado após a transformação, o produto da linha i da matriz de U^ com a coluna j da matriz de U^ é igual a ei|ej, que é 0, se i for diferente de j, ou 1, se i=j.

4.3. Postulados da mecânica quântica

A mecânica quântica é construída a partir dos seguintes postulados. Há 100 anos, Max Born e outros físicos da época mostraram que a teoria obtida partindo desses postulados explica perfeitamente os fenómenos conhecidos na época, que não podiam ser explicados na mecânica clássica. Os postulados básicos continuam sendo os mesmos que foram propostos há 100 anos, embora existam diferentes formas de serem enunciados. Nesta secção vamos enunciar cinco primeiros postulados e na secção seguinte enunciaremos um sexto postulado.

  1. Em cada instante, o estado de um sistema físico é descrito por um ket |Ψ, normalizado: Ψ|Ψ=1.
  2. Dois estados diferentes, sem ambiguidade, |Ψ|Φ, são descritos por kets ortogonais: Ψ|Φ=0
  3. Qualquer variável dinâmica que possa ser medida no sistema é representada por um operador hermítico F^, designado por observável.
  4. Cada medição de um observável F^ dá, aleatoriamente, algum dos seus valores próprios Fj. Quando o estado do sistema for |Ψ, a probabilidade de se obter Fj será:
    Pj=|Fj|Ψ|2
    (4.7)
    onde |Fj é o vetor próprio correspondente ao valor próprio Fj, normalizado.
  5. Se a medição de um observável F^ dá como resultado o seu valor próprio Fj, imediatamente após a medição o estado do sistema passa a ser o vetor próprio |Fj.

No postulado II, se dois estados |Ψ e |Φ não são ortogonais, então Ψ|Φ=z (diferente de zero) e a combinação linear |Φz|Ψ é perpendicular a |Ψ. Isso mostra que, nesse caso, |Φ tem uma componente que corresponde ao estado |Ψ, e subtraindo essa componente, obtém-se um estado diferente de |Ψ.

No postulado IV, como os vetores próprios |Fj de um operador hermítico, normalizados, são ortonormais (ver exercício 2.3), Fi|Fj=δij, e o estado do sistema pode ser escrito como:

|Ψ=j=1nFj|Ψ|Fj
(4.8)

O quadrado da norma do estado é:

Ψ|Ψ=j=1n|Fj|Ψ|2
(4.9)

que é igual a 1. Isso garante que a soma das probabilidades Pj é igual a 1.

A cada variável dinâmica está associada um operador hermítico F^, e os possíveis valores obtidos quando essa variável for medida, são os valores próprios do operador F^, que são números reais. Por exemplo, se o estado |Ψ do sistema for a seguinte combinação de estados prórios de F^:

|Ψ=12|F1+13|F4+16|F8

os possíveis resultados da medição do observável F^ seriam F1, com probabilidade 1/2, F4, com probabilidade 1/3, ou F8, com probabilidade 1/6. O valor esperado da medição seria,

F^=F12+F43+F86

e se o resultado da medição for F4, o estado mudará ficando igual a |F4.

4.4. Evolução temporal do estado quântico

A mecânica quântica foi desenvolvida de forma independente por Schrödinger e Heisenberg, usando duas abordagens diferentes. Schrödinger encontrou uma equação que permite determinar a função de onda de um sistema, que descreve o estado do sistema. O método usado por Heisenberg é baseado na álgebra de matrizes. Mais tarde ficou claro que as duas abordagens são duas formas diferentes de estudar o mesmo problema.

4.4.1. Descrição de Schrödinger

Na descrição de Schrödinger, os operadores correspondentes a observáveis não dependem do tempo, mas o estado do sistema sim. Dado o estado do sistema num instante t, existe um operador U^, designado por operador de evolução, que permite calcular o estado em outro instante t+Δt:

|Ψ(t+Δt)=U^(Δt)|Ψ(t)
(4.10)

O quadrado da norma de |Ψ(t+Δt) é,

Ψ(t+Δt)|Ψ(t+Δt)=Ψ(t)|U^(Δt)U^(Δt)|Ψ(t)
(4.11)

Para que a descrição probabilística continue válida em qualquer instante, é então necessário que:

U^(Δt)U^(Δt)=1^
(4.12)

para qualquer valor de Δt. Isto é, o operador de evolução tem de ser unitário.

O valor esperado de um observável F^, no instante t+Δt, é dado pela expressão:

F^t+Δt=Ψ(t)|U^(Δt)F^U^(Δt)|Ψ(t)
(4.13)

4.4.2. Descrição de Heisenberg

Na descrição de Heisenberg o estado do sistema não depende do tempo, mas o operador associado a um observável varia com o tempo. O mesmo valor esperado (4.13) é obtido admitindo que |Ψ(t+Δt)=|Ψ(t)=|Ψ e o operador em t+Δt é:

F^(t+Δt)=U^(Δt)F^(t)U^(Δt)
(4.14)

É claro que U^(0) é igual ao operador identidade 1^. No limite Δt0, U^(Δt) deverá ter outro termo proporcional a Δt:

U^(Δt)=1^+ΔtΩ^
(4.15)

Como U^(Δt) é unitário, temos,

U^(Δt)U^(Δt)=1^=(1^+ΔtΩ^)(1^+ΔtΩ^)=1^+Δt(Ω^+Ω^)
(4.16)

onde o termo que multiplica a Δt2 foi ignorado, porque estamos a considerar que Δt é aproximadamente zero. A conclusão é que Ω^=Ω^, ou seja, o operador Ω^ deverá ser anti-hermítico. Substituindo Ω^ por iG^, o adjunto de Ω^ será iG^, e a condição Ω^=Ω^ implicará G^=G^. Isto é, o operador G^ é um observável (hermítico), e segundo a equação (4.15), tem unidades de inverso do tempo.

A constante de Planck, h, deverá aparecer na expressão do operador de evolução U^, e como as unidades de h são energia vezes tempo, podemos introduzir outro operador H^, com unidades de energia, tal que G^=H^/, onde é a constante de Planck dividida por 2π. A expressão (4.15) para o operador de evolução, no limite Δt0 é então:

U^(t)=1^iΔtH^
(4.17)

O fator de 2π foi introduzido por conveniência, porque se não fosse introduzido, em vários resultados mais para a frente apareciam factores de 2π (veja, por exemplo o exercício 1.1 sobre o modelo de Bohr). O valor da constante , no sistema internacional de unidades e com 6 algarismos significativos, é:

=1.05457×1034kg·m2s
(4.18)

Usando a equação (4.17), a expressão (4.14), no limite Δt0, é,

F^(t+Δt)=(1^+iΔtH^)F^(t)(1^iΔtH^)=F^(t)iΔt[F^,H^]
(4.19)

onde o termo que multiplica a Δt2 foi ignorado porque Δt aproxima-se de zero.

A derivada do operador F^(t) em ordem ao tempo, é então:

dF^dt=limΔt0F^(t+Δt)F^(t)Δt=i[F^,H^]
(4.20)

Observe-se a semelhança desta expressão com a expressão (3.24) no caso da mecânica clássica. Tendo também em conta que o comutador de dois operadores tem as mesmas propriedades dos parênteses de Poisson, a equação (4.20) usa-se como base para o sexto postulado da mecânica quântica:

  1. O comutador de dois observáveis F^ e G^ é igual a:
    [F^,G^]=i{F,G}
    (4.21)
    onde F e G são as expressões dos observáveis na mecânica clássica, e {F,G} são os parênteses de Poisson entre elas.

Na mecânica clássica os parênteses de Poisson da posição, x, e a quantidade de movimento, p, de uma partícula que se desloca em uma dimensão, é igual a 1:

{x,p}=xxppxppx=10=1
(4.22)

Como tal, o postulado VI implica que o comutador dos operadores de posição, x^, e quantidade de movimento, p^, de uma partícula que se desloca em uma dimensão, é:

[x^,p^]=i
(4.23)

Exercícios

4.1. Demonstre a regra da cadeia para comutadores.

Resolução. Usando a definição do comutador temos,

[F^Λ^,Γ^]=F^Λ^Γ^Γ^F^Λ^

podemos subtrair e somar F^Γ^Λ^ sem alterar nada:

[F^Λ^,Γ^]=F^Λ^Γ^F^Γ^Λ^+F^Γ^Λ^Γ^F^Λ^

e agrupando os dois primeiros termos e os dois últimos em comutadores, obtém-se o resultado:

[F^Λ^,Γ^]=F^[Λ^,Γ^]+[F^,Γ^]Λ^

4.2. As representações matriciais do estado de um sistema, |Ψ, e de um observável, F^, são:

|Ψ=[0.96i0.28]F^=[2.64i0.48i0.482.36]

(a) Mostre que a norma do estado, |Ψ, é igual a 1.

(b) Determine o valor esperado de F^.

(c) Mostre que os dois kets.

|Φ=[0.8i0.6]|Υ=[i0.60.8]

são estados próprios do observável F^, com norma igual a 1, e determine os respetivos valores próprios.

(d) Quais são os possíveis resultados da medição do observável F^ no sistema com estado |Ψ, e qual a probabilidade de se obter cada um desses resultados?

(e) Confira que o valor esperado calculado na alínea b é igual à soma dos produtos dos possíveis resultados vezes as respetivas probabilidades.

Resolução. (a) O quadrado da norma do ket |Ψ é:

Ψ|Ψ=[0.96i0.28][0.96i0.28]=0.9216+0.0784=1

e, como tal, Ψ=Ψ|Ψ=1.

(b) O valor esperado do operador F^ é:

F^=[0.96i0.28][2.64i0.48i0.482.36][0.96i0.28]

F^=2.876096

(c) A norma desses dois kets é igual a 1, porque a norma ao quadrado é 0.82+0.62, que é igual a 1. Para determinar se um ket é estado próprio de um operador, aplica-se o operador ao ket e, se o resultado for um número vezes o ket original, então esse ket é estado próprio e o número é o respetivo valor próprio. Aplicando o operador ao ket |Φ obtemos,

F^|Φ=[2.64i0.48i0.482.36][0.8i0.6]=[2.112+0.288i0.384+i1.416]=[2.4i1.8]

F^|Φ=3|Φ

e isto mostra que |Φ é vetor próprio com valor próprio 3. Já para o ket |Υ temos,

F^|Υ=[2.64i0.48i0.482.36][i0.60.8]=[i1.584i0.3840.288+1.888]=[i1.21.6]

F^|Υ=2|Υ

o que mostra que |Υ é vetor próprio com valor próprio 2.

(d) Os possíveis resultados são os valores próprios do operador, que como mostramos na alínea anterior são 2 e 3. A probabilidade de obter cada um desses resultados é igual ao quadrado do módulo do produto interno entre o estado |Ψ e respetivo estado próprio normalizado. O produto interno entre o vetor próprio correspondente a 2 e o estado do sistema é:

Υ|Ψ=[i0.60.8][0.96i0.28]=i0.352

E a probabilidade da medição dar o valor 2 é o módulo desse número ao quadrado:

P2=0.3522=0.123904

Já no caso do estado próprio com valor próprio 3,

Φ|Ψ=[0.8i0.8][0.96i0.28]=i0.936

E a probabilidade da medição dar o valor 3 é o módulo desse número ao quadrado:

P3=0.9362=0.876096

Observe que P2+P3 é igual a 1, como deveria ser.

(e) A soma dos produtos dos possíveis resultados vezes as respetivas probabilidades é:

2P2+3P3=2×0.123904+3×0.876096=2.876096

que é o mesmo valor esperado obtido na alínea b.

4.3. Uma função de estado que na mecânica clássica seja representada por um vetor, na mecânica quântica passa a ser representada por três operadores hermíticos, de forma que os possíveis valores obtidos na medição desse operador são os vetores com componentes iguais aos possíveis valores próprios desses operadores. No caso da posição de uma partícula, em coordenadas cartesianas, os operadores das componentes são x^, y^ e z^, e a quantidade de movimento corresponde é representada pelos operadores p^x, p^y e p^z. Definem-se as três componentes do operador de momento angular, em analogia com a mecânica clássica:

L^x=y^p^zp^zx^L^y=z^p^xp^xz^L^z=x^p^yp^yx^

E o operador correspondente ao quadrado do módulo do momento angular é:

L^2=L^x2+L^y2+L^z2

(a) Encontre as expressões dos comutadores entre os três operadores L^x, L^y e L^z.

(b) Mostre que o comutador de L^2 com qualquer uma das componentes L^x, L^y e L^z é zero.

Resolução. (a) De acordo como o postulado VI, os comutadores obtêm-se multiplicando por i o lado direito de cada um dos parênteses de Poisson já calculados no exercício 3.2:

[L^x,L^y]=iL^z[L^y,L^z]=iL^x[L^z,L^x]=iL^y

(b) O comutador de L^2 com L^x é:

[L^2,L^x]=[L^x2,L^x]+[L^y2,L^x]+[L^z2,L^x]
=L^x[L^x,L^x]+[L^x,L^x]L^x+L^y[L^y,L^x]+[L^y,L^x]L^y
+L^z[L^z,L^x]+[L^z,L^x]L^z
=i(L^yL^zL^zL^y+L^zL^y+L^yL^z)=0

E, de forma análoga,

[L^2,L^y]=[L^x2,L^y]+[L^y2,L^y]+[L^z2,L^y]
=L^x[L^x,L^y]+[L^x,L^y]L^x+L^y[L^y,L^y]+[L^y,L^y]L^y
+L^z[L^z,L^y]+[L^z,L^y]L^z
=i(L^xL^z+L^zL^xL^zL^xL^xL^z)=0

[L^2,L^z]=[L^x2,L^z]+[L^y2,L^z]+[L^z2,L^z]
=L^x[L^x,L^z]+[L^x,L^z]L^x+L^y[L^y,L^z]+[L^y,L^z]L^y
+L^z[L^z,L^z]+[L^z,L^z]L^z
=i(L^xL^yL^yL^x+L^yL^x+L^xL^y)=0